27/09/2022
A igualdade de dar e receber
O Brasil realiza o maior número de transplantes de órgãos financiados pelo setor público. Somos o segundo país do mundo, atrás dos Estados Unidos, em números absolutos de transplantes realizados. No ano de 2021, os gastos públicos, nos procedimentos relacionados à doação, transplante de órgãos, cuidado após o transplante e medicamentos para a manutenção do transplante, foram de R$1,2 bilhão.
Atualmente, 95% dos transplantes realizados no Brasil foram financiados pelo SUS, observando-se um crescente interesse do setor privado, ainda que muitas das modalidades de transplantes não façam parte do rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. Apenas o transplante renal, medula óssea, e de tecidos, como córnea, ossos, pele e músculos estão contemplados no rol de procedimentos da ANS. Transplantes que salvam vidas, como o de coração, fígado, pulmão, intestino e de pâncreas, permanecem excluídos de cobertura pela saúde suplementar.
O programa de transplantes no Brasil possui um amplo marco regulatório, que garante as premissas fundamentais para a doação de órgãos. A doação ocorre protegida da comercialização das relações humanas, sem troca de benefícios. Apesar da grande atividade de transplante no país, o número de doações encontra-se aquém das nossas necessidades. Segundo os dados consolidados pelas Centrais de Transplantes dos Estados, e publicados no Registro Brasileiro de Transplantes da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos -RBT-ABTO, até junho deste ano, 51.674 pessoas aguardavam por um transplante no Brasil. O Brasil possui uma taxa de doação efetiva de órgãos de 15,4 doações por milhão de habitantes (ppm). Os estados do Paraná e Santa Catarina se destacam, com 39,7ppm e 37,9ppm, respectivamente. E por quê estes dois estados apresentam taxas de doações tão acima da média nacional?
Estudo realizado na Espanha, o país com a maior taxa de doação no mundo, algo próximo dos 50 ppm, demostrou que a taxa de doação foi crescente, apesar do nível de concordância da população, sobre a doação de órgãos, permanecer estável ao longo dos anos. A principal estratégia repousa na qualificação adequada dos profissionais de saúde, que se relacionam com as famílias dos potenciais doadores. Os estados do Paraná e de Santa Catarina investiram neste tipo de capacitação. Santa Catarina, por exemplo, nos últimos 17 anos, capacitou algo em torno de 7000 profissionais de saúde. A abordagem familiar deve respeitar o luto e o momento das famílias, através do uso adequado das técnicas de comunicação.
Os profissionais de saúde, mesmo os devidamente capacitados, não possuem o tempo necessário, dedicado à atividade de doação de órgãos, que envolve a busca ativa dos potenciais doadores, o acolhimento familiar e a tomada do termo de consentimento à doação. A criação de uma carreira de profissional de saúde, capacitado e dedicado exclusivamente ao processo de doação de órgãos, teria o potencial de aumentar o número de doadores e reduzir a lista de espera por um transplante de órgão.
Devemos ampliar o acesso ao transplante a aqueles que sofrem de doenças crônicas. Reunindo os dados do censo brasileiro de diálise de 2020 e do Registro Brasileiro de Transplantes até junho de 2020, conclui-se que, da estimativa de 144.779 pessoas em diálise no Brasil, apenas 18,5% ou 26.768 pessoas encontravam-se na lista de espera por um transplante renal. Portanto, temos um grave problema de acesso a serviços de transplante renal no Brasil. O mesmo se aplica para o transplante cardíaco, que está muito abaixo do realizado em outros países, como nos Estados Unidos.
27 de setembro é o dia nacional de conscientização sobre a importância da doação de órgãos. O estado do Rio de Janeiro, após a restruturação da Central Estadual de Transplantes, ocorrida em 2010, apresenta um crescimento na sua atividade. Partimos de 261 transplantes, em 2010, para o recorde histórico de 821 órgãos transplantados, em 306 doações, no ano de 2019. A pandemia arrefeceu a atividade, mas em 2021 obtivemos a segunda melhor marca histórica, com 304 doações, onde 82%, ocorreram nos hospitais públicos.
Transplante de órgãos carrega o paradoxo de morte e vida, reunidos num só momento. No Brasil, a desigualdade econômica e social convive com o legitimo direito universal à saúde. A doação de órgãos é um ato de amor ao próximo. Doar e receber, em condições de equidade, justiça e igualdade, longe dos paradoxos da desigualdade brasileira.
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Artigo publicado no jornal O Globo
Alexandre Cauduro é médico, cardiologista pediátrico e diretor-geral da Central Estadual de Transplantes RJ